Caso você não esteja por dentro do tema, estamos vivendo uma grande crise logística, em especial no mercado automotivo, principalmente em função da escassez e alta do preço dos microprocessadores. Dado esse cenário, não podemos desconsiderar que o paradigma do sistema Just in Time gera impacto na resiliência e robustez das montadoras frente a sua dependência de fornecedores. Que fique claro, esse texto não trata sobre uma crítica ao Just in Time, mas sim uma reflexão sobre a relação de causa e efeito quando fazemos escolhas dentro de um contexto tão complexo e real necessidade de discussão sobre possíveis evoluções nesse modelo.
O Just in Time tem como um de seus principais pensadores de Taiichi Ohno, engenheiro da Toyota na década de 1950, que se inspirou no trabalho de Henry Ford. Ohno definiu o Just in Time como uma forma de eliminar desperdícios na forma de estoques em excesso, movimentações desnecessárias e custos de armazenamento. Ao invés de desperdiçar tempo, trabalho e dinheiro armazenando peças ao longo da linha de montagem ou armazenando produtos acabados, a ideia de Ohno era que os fornecedores pudessem entregá-los exatamente quando fossem necessários. Por sua vez, isso aumentaria os lucros, reduzindo a quantia que as empresas gastavam na manutenção de estoques e no pagamento de mão de obra adicional.
Após sua introdução no ocidente na década de 1980, o modelo Just in Time gradualmente saiu da fábrica de automóveis e entrou em todo tipo de produção de bens e serviços. Essa forma de trabalho forçou seu caminho por todas as cadeias de suprimentos até que se esperasse que cada fornecedor, grande ou pequeno, entregasse produtos prontamente ao próximo comprador. Isso aumentou a concorrência entre as empresas para entregar mercadorias rapidamente, o que significou que as empresas reduziram seus custos a partir da maior eficiência logística.
A entrega Just in Time contribuiu, assim, para o desenvolvimento de uma economia de eficiência a partir de uma cadeia de produção descentralizada (não verticalizada). Isso possibilitou maior eficiência do fluxo de caixa e possibilitou a produção de produtos melhores e mais baratos. Críticos defendem, no entanto, que o Just in Time promoveu o crescimento de empregos mais precários, com trabalhadores recrutados apenas quando seriam necessários. Segundo os críticos, o pensamento Just in Time alimentou nossa cultura de trabalho 24 horas por dia, 7 dias por semana junto com todos os problemas de saúde mental que a acompanham. Sobre essas críticas, não há consenso.
A entrega de produtos com velocidade depende da infraestrutura. A partir da década de 1980, as rodovias foram alargadas, os portos aprofundados e foram acrescentados canais de escoamento logístico para acompanhar o ritmo das mudanças. Os armazéns do século XXI transformaram-se de locais de armazenamento em vastos centros de distribuição e atendimento. Mas a velocidade, como qualquer piloto de Fórmula 1 sabe, traz seus próprios riscos. Inundações, falta de energia, estradas fechadas, disputas trabalhistas e, claro, pandemias podem interromper um sistema tão complexo e descentralizado.
“Como o Just in Time reduziu os estoques considerando um nível seguro tomando como base no histórico, uma crise imprevista pode levar a uma escassez generalizada”
O Just in Time está mais propenso a crises, afinal vivemos o tal mundo VUCA (Volátil, Incerto, Complexo e Ambíguo). Os horários do transporte de contêineres não são confiáveis desde o início da pandemia no início de 2020. O aumento dos preços dos combustíveis também levou à redução das velocidades de envio e a demanda se tornou praticamente imprevisível a depender do produto. Focando no mercado automotivo, a crise se intensificou em 2021, quando as fábricas de microprocessadores, concentradas na Ásia, pararam e fizeram com que a oferta desses componentes despencasse. Ao mesmo tempo, a reabertura econômica em vários países elevou a demanda por diversos produtos, incluindo automóveis.
Mas, como Henry Ford encararia essa crise?
Henry Ford, o patrono da produção em massa, era atormentado pela possibilidade de ficar sem peças e matérias-primas. Ford era crítico do mercado financeiro, especialmente do mercado de ações, mas também desconfiava de seus fornecedores, ou do risco compartilhado com eles. Ele era neurótico em estocar materiais suficientes para garantir que suas linhas de montagem pudessem continuar operando sem risco de escassez.
Hoje, por exemplo a mesma Ford é fortemente dependente de um único fornecedor de chips localizado a mais de 11.000 quilômetros de distância, em Taiwan. Com chips escassos em toda a economia global, a Ford e outras montadoras foram forçadas a interromper a produção de forma intermitente.
Henry Ford à época e dentro do contexto o qual estava inserido, percebeu que as cadeias de suprimentos eram frágeis, necessitando de escrutínio constante e planos de backup. Apesar de sua hostilidade em relação aos sindicatos, ele compreendia o valor de salários generosos para motivar os trabalhadores. E alertou que as demandas dos investidores por ganhos de curto prazo podem ameaçar a resiliência de longo prazo.
Claro que nenhum desafio pode ser tão simplificado. Seria inviável a Ford hoje produzir e armazenar todos os microchips (sem falar de componentes) necessários à sua produção. Tanto por questões de competência como questões de custo: A picape F150 utiliza mais de 800 tipos de chips, a maioria com vida útil limitada, tornando-os difíceis de estocar e exigindo dependência de especialistas.
Precisamos integrar metodologias e tecnologias
A solução mais provável é o caminho do meio somando metodologia à tecnologia de ponta. O uso extensivo de dados, uma rede efetivamente conectada e o desenvolvimento de micro fábricas, podem ser um caminho nessa tormenta, permitindo o fluxo puxado em uma escala muito maior para um mundo mais dinâmico e complexo. Problemas complexos em escala tipicamente exigem soluções sofisticadas e tecnológicas.
“A digitalização avançada dentro das fábricas deve promover um ecossistema que conecta o produto, o fabricante, fornecedores, clientes e várias outras partes interessadas.”
Dados utilizados de forma inteligente criam valor, integração e maior previsibilidade. Dados de demanda, do fornecedor e informação sobre a movimentação de produtos e materiais podem ser mantidos, por exemplo, na blockchain. Cada produto pode ter várias características transacionais que são registradas juntamente com os dados históricos de um produto. Essas transações podem declarar a origem do produto, a qualidade, quantidade, proprietários e tempo.
Esses dados fornecem a capacidade de termos rastreabilidade em tempo real e histórica ao longo de toda cadeia, até o consumidor. Assim, clientes podem acessar essas informações para, por exemplo, escolher comprar produtos mais sustentáveis e as empresas podem acompanhar a jornada e a eficiência no uso de recursos ao longo do ciclo de transformação.
À medida que os sistemas industriais entram em uma esfera mais ciberfísica, construída sobre automação e hiperconectividade, obviamente há mais dependência de tecnologia. A Indústria 4.0 fornece o poder de desenvolver máquinas mais engenhosas, inteligentes e sustentáveis. Por outro lado, usando métodos inovadores para aliviar os riscos de segurança e aumentar a flutuabilidade, precisamos ser inteligentes em nossa abordagem para proteger essas infraestruturas super relacionadas.
Muitas organizações mais jovens e tecnologicamente avançadas já começaram a investir nesses conceitos, juntamente com alguns players de mercado estabelecidos. A tecnologia com boas metodologias e filosofias de gestão podem ser a única resposta à mudança na dinâmica do consumidor e em um mundo mais complexo e conectado.
Gilberto Strafacci Neto
Practia Country Manager.