Esse texto foi feito por um humano, eu. Talvez a gente encontre cada vez mais essa informação em textos, vídeos, músicas e conteúdos diversos. A reflexão que quero trazer é se isso é necessariamente algo bom e se, por ser um texto feito totalmente por mim, o torna realmente autêntico, único e insubstituível.
Assim como aconteceu com o tal Novo Normal e o contexto VUCA, é inegável que existe uma nova “palavra da ordem”. Todos estão discutindo o papel das redes generativas, a inteligência artificial e o popstar do momento, o ChatGPT.
Sempre vemos buzzwords inundando as redes sociais, rodas de conversas e futuramente palestras de futurólogos. Contudo, precisamos ter humildade que, de fato, estamos de frente de uma revolução sem precedentes.
Assim, trago à luz a discussão sobre a valorização do conteúdo criado por humanos. E essa discussão deve ser pragmática e menos romântica. Sabemos que o conteúdo produzido por pessoas reais é a origem de tudo. Sabemos que inteligência, no sentido mais amplo, é algo que dificilmente as máquinas irão possuir. Nossa capacidade de criar é única, rica em emoções, cheia de personalidade e nuances que só são possíveis através da criatividade e da visão complexa que temos como indivíduos e como sociedade.
“Tudo é devagar até ser de repente”
O uso extensivo de Inteligência Artificial em artes, criação de texto, edição de vídeos, dublagem, tradução e até mesmo programação atingiu um novo patamar. Isso é inegável. Contudo, não é algo novo, uma vez que assistentes inteligentes tem ocupado mais e mais espaço em nosso dia a dia nos últimos anos. Talvez, no passado, de uma forma mais tecnológica, complexa e orientada à programação, mas é notória a evolução da Inteligência não Humana cada vez mais conectada à Inteligência Humana em nossas rotinas.
A interface facilitada junto de um volume incrível de informação, sem citar a gratuidade de acesso criados pela OpenAI ou MidJourney, por exemplo, democratizaram e criaram um novo paradigma para o uso dessas tecnologias no dia a dia, inclusive pelo público em geral, não necessariamente técnico.
Como resultado o ChatGPT, o popular chatbot da OpenAI, atingiu 100 milhões de usuários ativos mensais em janeiro de 2023, apenas dois meses após o lançamento, tornando-se o aplicativo de consumo de crescimento mais rápido da história.
“Nada se cria, tudo se copia”
A primeira polêmica que ganhou força com relação ao tema de uso de IA Generativa foi sobre a propriedade intelectual das informações e dados, das mais diferentes fontes, que nutrem essas inteligências artificiais. Quem é dono (ou qual o direito de propriedade intelectual) de uma IA treinada com base em dados, informações, textos e imagens que eu disponho na internet?
Por exemplo, segundo alguns artistas, a IA cria a sua arte digital nas costas dos criadores que não são reconhecidos, creditados ou pagos. Novamente, quem é dono de uma arte que se baseia na arte de outros (com ou sem consentimento)?
Claro, podemos entrar no mérito se o consentimento é consciente, inconsciente, legal ou ilegal com base no aceite dos tais termos de uso quando logamos ou acessamos redes socias, aplicativos e softwares. Sabendo ou não, estamos enriquecemos a base de conhecimento e treinando essas Inteligências Artificiais o tempo todo. Ou você achou que reconhecer uma imagem em um Captcha era apenas um fetiche das Big Techs?
Mas meu ponto é outro. O próprio conhecimento humano é baseado no conhecimento regresso. Nada efetivamente é totalmente autêntico. Mesmo não percebendo, qualquer criação se baseia e informações dispostas pela humanidade. Por exemplo, uma pessoa só aprende a ler a escrever se a ensinamos. Se ela não acessa o conhecimento existente, efetivamente ela fica muito limitada do seu potencial de inovação e criação. Ou seja, não existe um conhecimento novo que não se baseie em um conhecimento existente, conscientemente ou não.
“Se não pode vencê-los, junte-se a eles”
Enquanto alguns são contra, outros aproveitam a oportunidade. Sem contar as milhares de pessoas que estão desbloqueando seu potencial criativo e, inclusive, ganhando dinheiro com as plataformas de IA Generativas, muitas pessoas estão se aliando com as Inteligências Artificiais.
Por exemplo, o dublador James Earl Jones vai se aposentar do papel de Darth Vader, mas a voz não irá mudar. Segundo a Vanity Fair, as sequências da saga que tiverem a aparição do vilão contarão com inteligência artificial para recriar a voz de James Earl. Isso é incrível, não só por contarmos eternamente com essa voz icônica, mas também pela discussão que se abre sobre os direitos de uso de imagem, inclusive, após a morte do ator.
O ponto aqui é que próprio Earl Jones, de 91 anos de idade, autorizou a recriação de sua voz pela start-up ucraniana Respeecher. Durante aparição de Vader no longa Obi-Wan Kenobi, que ainda contou com a voz do ator, a inteligência artificial foi empregada para rejuvenescer sua dublagem.
Nos próximos filmes e séries de Star Wars, a empresa Respeecher vai usar o arquivo de gravações de Jones mantido pela Lucasfilm para recriar do zero sua voz. O trabalho em Obi-Wan Kenobi foi completado pelos funcionários da empresa mesmo durante a guerra da Ucrânia com a Rússia.
Levanto a provocação: O problema é a defesa da pureza do conteúdo totalmente humano, ou apenas não sermos pagos quando a IA usa nossa informação, conhecimento, identidade ou estilo? Será que não ganharemos a eternidade e muito mais escala com uso dessas tecnologias? A reposta é sim e sim.
“Deixe para o robô algo que você não gostaria de fazer”
Chamarei todas as IA de robôs por pura simplificação. Seres robóticos faziam parte do nosso imaginário antes de serem realidade. É incrível essa perspectiva de que, se um dia imaginamos, um dia será possível. Mas quero aqui discutir a etimologia do termo robô.
Os tais autômatos, surgiam em narrativas fantásticas da literatura do século XIX como manifestações de um poder misterioso e sobrenatural, na maior parte das vezes trazendo destruição. A Revolução Industrial e os avanços da ciência passaram a alimentar o imaginário de autores da época, muitas vezes resultando em tramas utópicas ou distópicas.
A palavra robô aparece pela primeira vez em R.U.R.: Robôs Universais de Rossum, peça de teatro do escritor checo Karel Čapek. Segundo o dramaturgo, o termo foi criado por seu irmão, não por ele próprio, e deriva do tcheco “robota”, que significa trabalho forçado, um sinônimo de trabalho escravo.
Na essência, robôs deveriam fazer atividades que os humanos não gostariam de fazer. Porém, no limite, podemos não querer fazer nada. Qual o limite do trabalho efetivamente não substituível? Cada vez mais essa faixa é menor.
O que quero dizer é o seguinte: Se a arte criada, se o texto proposto, se o vídeo editado estão bons, realmente faz tanta diferença para você se foi feito por uma máquina ou por um humano? Numa perspectiva Aristotélica, tomando como base a teoria das quatro causas, o que tem valor efetivo? O trabalho braçal que transforma a causa material em causa formal? Ou o valor jaz somente na causa final?
Segundo Aristóteles, ao pensarmos em algo a resposta precisa conter quatro causas:
- A causa eficiente – o que inicia o movimento, o agente de transformação;
- A causa formal – a ideia que governa um acontecimento;
- A causa material – a substância trabalhada / transformada;
- A causa final – o objetivo a ser alcançado;
Um exemplo clássico é o do escultor (causa eficiente), que trabalha um bloco de mármore (causa material), com o objetivo de fazer uma bela peça de arte (causa final), tendo em sua mente a imagem ideal de uma estátua (causa formal).
Se atingimos a mesma causa final (estátua) para materializar a ideia de um autor (causa formal), saber quem fez e como fez, realmente, faz tanta diferença?
É possível perceber a miopia do meu argumento, do contrário, não haveria hoje a valorização de um produto artesanal, de um alimento orgânico ou até mesmo de um relógio suíço. Mas não podemos negar que a escala de produção desses itens frente ao todo é expressivamente reduzida.
Acredito que valor essencial do humano está na sua capacidade de entender problemas, idear e propor soluções e não na execução que transforma a ideia em realidade. No limite, toda execução poderá ser substituída. O que não podemos substituir é a visão e o objetivo que partem do humano.
“Ping-Pong de Robôs”
Imagine um professor que cria um exercício para uma prova a partir do ChatGPT. Ele está usando uma ferramenta para apoiar a criação de um conteúdo com base em uma ideia. Não seria, nesse caso, permitido um aluno responder essa prova usando a mesma ferramenta? Isso mesmo, uma IA perguntando e uma IA respondendo e a gente orquestrando esse balé. Mas aonde está o aprendizado e a criação de conhecimento? O conhecimento sai do eixo da execução (e da resposta) passa para espectro da análise, reflexão e dialética.
Penso que nossa maior capacidade ainda está em entender qual problema queremos resolver e qual o propósito da sua resolução. O problema que queremos resolver a partir de uma ideia é, talvez, a fronteira final da onde não seremos substituidos. Mais do que executores, seremos idealizadores e curadores de um mundo automatizado.
“Trocando em miúdos”
Esse artigo foi feito por um humano, por isso encontrará alguns erros e inconsistências. Já pensou chegarmos no limite de que algo é dito humanizado por exatamente ser imperfeito?
Esse texto ser feito por uma pessoa realmente não significa muito para você. Se esse texto cumpriu o propósito de gerar uma reflexão, por exemplo, já não seria suficiente? Se eu contasse que foi feito por uma máquina, ou não contasse, qual o impacto na sua experiência?
Claro, com certeza estou errado em muitos pontos. É muito difícil acertar em cenários de tal complexidade. Mas o esforço em tentar entender o desdobramentos desse novo mundo que se abre é valoroso e me motiva. E aquilo que nos motiva é que toca a nossa essência.
Proponho uma última reflexão: talvez a democratização das IA seja algo bom, pois forçará que foquemos mais no propósito e na intenção e não na execução. Como disse, a mudança de mentalidade de executor para idealizador e curador é complexa e demanda uma expansão de consciência. Por fim, isso tudo pode possibilitar que tenhamos mais tempo para olhar mais para os outros e para nós mesmos.
Gilberto Strafacci Neto
Humano, Country Manager da Practia no Brasil (www.practiaglobal.com.br) e Senior Partner do Setec Consulting Group (www.setecnet.com.br). Master Business Essentials CORe Program pela Harvard Business School, MBA em Liderança e Inovação, Engenheiro Mecânico pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, Master Black Belt, Agile Coach, Design Thinker, Manager 3.0, Certified Six Sigma Master Black Belt pela American Society for Quality (ASQ) e Certified Scrum Master pela Scrum Alliance e Facilitador Certificado LEGO® SERIOUS PLAY®