Bons livros funcionam como parábolas, ou seja, narrativas alegóricas que transmitem uma mensagem indireta, por meio de comparação ou analogia. Recentemente reli o clássico Quem Mexeu no Meu Queijo? (Who Moved My Cheese?, no original, em inglês), escrito por Spencer Johnson à luz do controle gerado pelo orçamento nas organizações, principalmente em projetos de tecnologia e considerando a necessidade de Transformação Digital.
O livro apresenta uma história envolvendo quatro personagens: dois ratinhos, Sniff e Scurry, e dois duendes, Hem e Haw. O livro é uma alegoria que retrata os objetivos que cada um de nós temos e as mudanças a que estamos sujeitos durante a busca destes objetivos. Durante a leitura, o leitor pode observar que atitude cada personagem toma diante das adversidades da vida e pode acabar se identificando com um dos quatro personagens.
Para Hem e Haw, o queijo é uma símbolo que representa o que eles procuram na vida, seja algo material, um relacionamento, um cargo em uma empresa. No entanto, os personagens esquecem de que, à medida que fazem uso do queijo, este vai acabando, ou melhor, desgastando. E não é que o queijo tem tudo a ver com o orçamento?
Hem, Haw, Sniff e Scurry (ou líderes da Área Financeira, Tecnologia, Inovação e Negócios, respectivamente) saem a procura do queijo (ou orçamento para sua iniciativa de Transformação Digital). Após longas caminhadas pelo labirinto eles encontram certa quantidade de queijo (ou a verba inicial para um piloto).
Depois de um tempo, o queijo acaba, Hem e Haw ficam muito decepcionados, Hem não aceita de maneira alguma aquilo. Já Sniff que previa aquilo, se juntou a Scurry e juntos foram em busca de um novo queijo (novos patrocinadores). Hem e Haw continuaram visitando o mesmo lugar (ou reuniões do conselho) durante mais uns dias com a esperança de ver o queijo (ou verba) de volta um dia.
Depois de alguns dias (ou meses em nossa realidade) Haw decide enfrentar a situação e passa a querer procurar um novo queijo no labirinto, diferente de Hem, que continuava insistindo. Haw prepara-se para sair para começa uma longa jornada pelo labirinto (ou conseguir ratear o orçamento). Enquanto isso Sniff e Scurry encontram muito mais queijo (investimento que estava pendente de aprovação há pelo menos 3 anos). Haw enfrenta seus medos e inseguranças dentro do labirinto (ou reuniões de defesa do projeto) e vai aprendendo com sua longa jornada até que encontra Sniff e Scurry (ou seja, só existe um dinheiro, o da empresa).
Discutimos pouco a estrutura orçamentária de projetos de inovação e tecnologia, principalmente quando ela ocorre de forma descentralizada. E muitas vezes, principalmente em tecnologias emergentes, o queijo é limitado, inacessível e está distante de quem conhece as dores do negócio para realmente se criar valor.
“Se Transformação Digital é um esporte que se joga junto com as as áreas de negócios, muitas vezes esqueceram a bola ou não sabemos quem é o seu dono”
Isso significa que muitas vezes a diretriz de transformação digital que está distribuída nas diferentes diretorias e unidades de negócio da organização não possui seu equivalente em termos de orçamento. Em suma, é raro o caso de organizações nas quais o orçamento conversa com o desdobramento prático do planejamento estratégico. Se existe uma visão de que as iniciativas de transformação digital estão orientadas às cadeias de valor e que as áreas de tecnologia e inovação serão facilitadoras desse processo, assim promovendo maior autonomia, o ideal é que o orçamento seja discutido à luz dessa forma de trabalho.
No entanto, assim como no livro, as partes envolvidas possuem diferentes perspectivas sobre comando, controle, coragem e autonomia. Em qualquer organização, por menor ou maior que seja, controlar orçamento é manter o poder. Assim, vemos um movimento de processos mais colaborativos e multidiscplinares que não são acompanhados por uma gestão orçamentária inteligente e flexível.
“Poxa, mas eu posso ser dono no orçamento (centralizado) e contratar as soluções tecnológicas e oferta-las via prestação de contas” (sejam softwares e serviços). Em teoria sim, mas existe um desafio em termos de velocidade, governança e accountability, principalmente em iniciativas como projetos de transformação digital. Quem realiza o Business Case? Quem monitora o ROI? Quem realiza os ganhos? A tendência, logo de partida, é que isso se torne uma gestão por conflitos onde, tipicamente, aquilo que foi “prometido” é visto como ” não cumprido”, seja de um lado ou de outro.
Dessa forma, entendo que exista um espaço importante para discussão da disciplina orçamentária dentro do contexto de inovação, tecnologia e transformação digital. Nenhuma organização será mais ágil se seu orçamento seguir sendo mantido como um queijo numa visão centralizada de comando em controle.
Gilberto Strafacci Neto
Country Manager da Practia no Brasil (www.practiaglobal.com.br) e Senior Partner do Setec Consulting Group (www.setecnet.com.br). Master Business Essentials CORe Program pela Harvard Business School, MBA em Liderança e Inovação, Engenheiro Mecânico pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, Master Black Belt, Agile Coach, Design Thinker, Manager 3.0, Certified Six Sigma Master Black Belt pela American Society for Quality (ASQ) e Certified Scrum Master pela Scrum Alliance e Facilitador Certificado LEGO® SERIOUS PLAY® (Ver PERFIL).