Você deve ter ouvido que Cyberpunk 2077, um dos jogos de mundo aberto mais aguardados dos últimos anos, é uma das maiores decepções da indústria recente dos games chegando ao limite de ser descontinuado na Playstation Store por simplesmente não funcionar em algumas plataformas. Não há como, a partir disso, evitar analisarmos o que causa um lançamento tão problemático, com diversos atrasos, e que afeta a experiência do jogador de forma tão profunda e como isso é representativo das dificuldades de gestão de projetos complexos e de tecnologia.
Sejamos justos, o que ocorreu com Cyberpunk 2077 não é novidade. O game se junta ao mitológico hall de lançamentos polêmicos na indústria dos games ao lado do longínquo E.T para Atari 2600, No Man’s Sky, Assassins’s Creed Valhala e outros. Por esse mesmo motivo, não sendo algo pontual e atípico, vale entender o que se passa na indústria dos games e o que podemos levar de lição para repensarmos a gestão de projetos nesses contextos.
Primeiro, cabe entendemos o mercado de games nos dias atuais. Quando a Netflix falou abertamente que seus maiores concorrentes não eram a HBO ou a Disney, mas sim Fortnite muita gente se assustou. Mas Reed Hastings, o CEO da empresa que deu essa declaração, não estava nem um pouco errado. A indústria dos videogames é, de longe, a maior do entretenimento mundial – enquanto o conteúdo sob demanda, categoria da qual Netflix faz parte, está apenas em sexto lugar entre os maiores do entretenimento.
Videogames geram três vezes mais dinheiro que cinema. Ambas as indústrias atingiram seu teto financeiro em 2018: Hollywood alcançou os seus importantes US$ 41,6 bilhões com a ajuda de muitas franquias e a volta de clássicos dos anos 1980; já os videogames alçaram aos US$ 134 bilhões com grandes lançamentos como Red Dead Redemption e God of War.
Muitas das empresas desenvolvedoras de games AAA (Triple A) produzem poucos jogos com um ciclo de vida muito extenso, levando entre 3 e 5 anos para um novo lançamento. Essas empresas de alta tecnologia tipicamente possuem capital aberto e a necessidade de investimentos é fundamental para garantir a operação nos períodos entre lançamentos. Por mais que alguns jogos possam gerar receita recorrente, esse não é o modelo comum das empresas que criam jogos de alto valor agregado, single player. A pressão pela entrega é altíssima, sendo que a mesma ocorre, normalmente, sem validações parciais. Esses desenvolvimentos seguem o modelo cascata, o que parece anacrônico, ainda mais em um contexto de alta complexidade.
A CD Projekt Red, a empresa responsável por Cyberpunk 2077 anunciou o lançamento do jogo em 2013 e iniciou seu desenvolvimento em 2014, ou seja, há pelo menos 7 anos. Esse ciclo de vida extremamente extenso, para uma entrega concentrada, não só aumenta a ansiedade dos investidores, como também aumento os riscos de um lançamento tão tardio. Imaginem só a gestão de pessoas, a quantidade de linhas de código, a gestão do versionamento, as integrações, testes e principalmente as atualizações necessárias ao longo de tantos anos.
Tecnicamente é um gigantesco desafio, ainda mais considerando-se que a plataforma onde esses jogos irão rodar não necessariamente está definida à priori. Pelo contrarário, o jogo foi lançado exatamente num momento de transição entre a oitava e a nova geração de consoles, que tem como principais representantes o Playstation 5 e o Xbox Series X. Ou seja, além de um desenvolvimento extremamente longo que já possui dificuldades inerentes, adiciona-se uma instabilidade externa acerca do ambiente volátil onde o jogo irá funcionar. Nesse sentido, a empresa optou por lançar o jogo tanto nas antigas como nas novas plataformas, o que se mostrou um grande fracasso.
Não definir um escopo claro e não ter fracionado a entrega de fato foi um erro. A empresa estava sendo forçada por seus investidores a lançar o jogo antes do fim do ano, depois de atrasar o jogo três vezes. Assim, na reta final, foram subestimadas a escala e a complexidade das questões necessárias para refinar o jogo nos consoles de menor capacidade gráfica. Sem testes adequados e validações dos usuários. Todos os releases liberados e que foram apresentados para a comunidade e para imprensa, rodavam em computadores super potentes. Faltou transparência.
Claro, é estranho pensar que empresas como Sony e Microsoft não façam homologação e validação dos jogos antes do seu lançamento. Parando para pensar, parece que o Product Owner e os responsáveis pelos consoles simplesmente não tinham um DOD (Definition of Done) estabelecido assim como critérios de validação para garantir atendimento às expectativas dos jogadores.
Para corrigir os problemas, a empresa está prometendo dois grandes patches em janeiro e fevereiro. Mesmo assim , já está sendo verbalizado que não se deve esperar uma experiência do console que se iguale ao PC. Parece que o desenvolvimento tomou tanto tempo que, em algum momento, se perdeu a definição das condições de contorno e dos requisitos para pleno funcionamento. Tudo indica que o jogo era para ter sido construído para geração anterior, porém com o anúncio das novas plataformas, foi atualizado para uma tecnologia mais recente e depois esqueceram de olhar pelo retrovisor.
Nesse sentido, faltou coragem para decidirem não lançar nas plataformas mais antigas e se aprofundarem no aprimoramento da experiência para a nova geração. Contudo, como a nova geração só deve ganhar força no mercado a partir de meados de 2021 e 2022, acabaram lançando um produto inacabado para esse limbo de transição. Ou seja, um pequeno atraso no lançamento para as plataformas anteriores se tornaram um grande atraso em função da baixa penetração dos novos consoles.
Talvez valesse mais a pena lançar um Cyberpunk 2075 para a geração anterior e uma nova versão atualizada e com novas features para as novas plataformas, aí sim chamado de Cyberpunk 2077, melhor que o Cyberbug que está no mercado. Até porque o caminho deveria ser transformar o jogo o quanto antes em multiplayer online, assim como foi feito com GTA e outras grandes marcas, mas isso, claro, dependia de um bom lançamento, que ocorreu até o início das devoluções.
Outro ponto importante é o senso de prioridade (ou a falta dele). O jogo claramente tem primazia nos detalhes, por exemplo na inteligência dos NPC (non-player characters), ou na construção de um ambiente imersivo com uma jornada personalizada, digna de um RPG. Mas isso de nada adianta quando o jogo trava ou personagens simplesmente aparecem e desaparecem, impedindo o cumprimento de missões e o avanço. O que adianta ter um personagem personalizável, mas que tipicamente não aparece, uma vez que o jogo é em primeira pessoa. Talvez valesse mais a pena investir energia no funcionamento, do que em detalhes que se tornam irrelevantes, dada a performance, principalmente nos consoles mais antigos.
Além disso, um relatório recente de Jason Schreier da Bloomberg revelou que os desenvolvedores do CD Projekt Red estão expressando abertamente o quanto estão frustrados com a forma como a administração lidou com o desenvolvimento e o lançamento do jogo. Segundo o relatório, os desenvolvedores se sentiram traídos ao ver na mídia que jogo estava sendo descrito descrito como “completo e jogável” , quando isso claramente era uma mentira. Ainda, foi relatado que a empresa se negou a contratar pelo menos 200 desenvolvedores que seriam necessários para os ajustes para as diversas plataformas. Faltou uma adequada gestão de pessoas que promoveria um ambiente saudável com colaboração e dando autonomia ao time de desenvolvimento, junto com um escopo mais claro.
Qual o preço para tornar um jogo famoso mundialmente? A resposta a essa pergunta pode esconder uma cultura tóxica de trabalho extremo por trás do seu lançamento. Essa prática, por muito tempo ignorada pela indústria, vem ganhando os holofotes e possui um nome, crunch. Em inglês, crunch significa algo como triturar, na tradução literal, uma analogia para quando desenvolvedores são forçados a cumprir horas extras sem pagamento, com rotinas de trabalho que podem chegar a 100 horas em uma semana.
O fato de os desenvolvedores do Cyberpunk 2077 estarem tão frustrados com o terrível lançamento do jogo quanto os fãs não é surpreendente. Esperançosamente, os muitos erros de gerenciamento da CD Projekt Red cometidos no Cyberpunk 2077 podem pelo menos ser usados para acelerar a remoção de crunch da cultura da indústria de videogames e promover um outro olhar mais consciente por parte dos consumidores antes da aquisição antecipada de qualquer jogo, bem como das plataformas que deverão ser igualmente responsabilizadas pela qualidade e pelas boas práticas de desenvolvimento.
Gilberto Strafacci Neto
Chief Operating Officer da Practia Brasil (www.practiaglobal.com.br) e Senior Partner do Setec Consulting Group (www.setecnet.com.br). Master Business Essentials CORe Program pela Harvard Business School, MBA em Liderança e Inovação, Engenheiro Mecânico pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, Master Black Belt, Agile Coach, Design Thinker, Manager 3.0, Certified Six Sigma Master Black Belt pela American Society for Quality (ASQ) e Certified Scrum Master pela Scrum Alliance e Facilitador Certificado LEGO® SERIOUS PLAY® (Ver PERFIL).